Muita gente pedala à noite em São Paulo, mas quinta-feira é
um dia diferente. Difícil pedalar na quinta após às 22h e não cruzar com pelo
menos duas dúzias de ciclistas além daqueles com quem se está pedalando. O que
predomina são os grupos organizados – ou não – que tem uma preferência por esse
dia, talvez pela proximidade ao fim de semana.
É a terapia - em grupo - dos ciclistas que vivem na cidade.
Pedalar no asfalto alivia a frustração de quem não tem terra pra pedalar por
perto. O que resta é rodar na malha asfáltica que se estende por dezenas de quilômetros
quadrados.
É preciso um pouco de imaginação pra cobrir três ou quatro
dezenas de quilômetros da cidade numa noite. Porque a cidade não muda. Toda
quinta ela está lá - igual - só mudou um pouquinho, talvez. Uma calçada pintada,
um prédio novo, um grafite atropelado, grama recém-plantada num meio fio. Mas é
só uma troca de roupa. A cidade em si, é sempre a mesma.
"Cuidado com todas as atividades que requeiram roupas
novas" li ontem, numa orelha de livro. Frase entre aspas atribuída a Henry
David Thoreau. Nunca li um livro dele, mas ele me parece que sabia das coisas.
E essa frase me parece que veio a calhar agora.
Enfim - além da terapia grátis e do exercício físico, o
pedal permite a observação da vida nas ruas. Algo raro de ser feito por mais do
que poucos minutos na rotina engessada da terra da garoa. Veja, por exemplo,
três personagens do pedal de ontem: uma noiva, um lixeiro, e um papai-noel.
A noiva passou ao nosso lado na Av. Paulista. Abriu a janela
de uma limusine preta, de vestido branco, com um copo de champanhe na mão.
Disse algo gentil, e acenou pros ciclistas, antes da limusine encostar no vão
livre do MASP. Desceu junto com o noivo - claramente desconfortável - vestindo
um fraque azul claro. Ficaram lá parados, segurando uma champanhe, até eu os
perder de vista. Provavelmente ela terá a lembrança dessa quinta-feira pelo
resto da vida.
O lixeiro estava próximo à Av. Faria Lima, quando o grupo de
aproximadamente cem bicicletas se aproximou. Um ciclista gritou aleatoriamente
“corinthians!” – provavelmente em alusão ao time, ou, em menor probabilidade,
ao livro do novo testamento. O lixeiro então gritou “é tudo palmeirense aí!”,
enquanto ele e alguns colegas corriam ao lado do grupo. Começou a dar risada e a
acenar. Nada engraçado havia sido dito, e ele não conhecia ninguém.
Provavelmente ele esquecerá dessa quinta-feira em poucos dias.
O papai-noel era de plástico, e estava na frente do Shopping
Iguatemi. Ele não fez nada, só ficou parado lá com seus quatro metros de altura.
Mas, por um momento, imaginei o lixeiro – que iria passar lá
em poucos minutos – rindo e acenando para o papai-noel. Me pareceu algo que ele
faria. Depois, imaginei a noiva passando na limusine, com a janela aberta,
olhando pro papai-noel numa das noites mais importantes de sua vida. Depois
imaginei tudo invertido. O lixeiro passando na frente do shopping dentro da
limusine tomando champanhe, e a noiva pendurada no caminhão de lixo numa
quinta-feira comum.
Depois imaginei o papai-noel de quatro metros pedalando
minha bicicleta, e eu parado na frente do Shopping Iguatemi sendo observado. Então,
– parado imóvel na frente do shopping - me imaginei escrevendo tudo isso no meu
computador, aqui na minha mesa do trabalho.
Eu adoro o pedal de quinta-feira.
E eu, lendo seu texto, senti vontade de voltar a pedalar. Muito bom!
ResponderExcluirSeeeensacional Porpeta!
ResponderExcluirTexto incrível, como esses rolês de bike, muito bom!
Abraços,
Giba
E eu, através de ti e do texto me vi nua, numa quinta feira qualquer
ResponderExcluirparada em frente ao shopping, no vão do Masp
a visão acabou.
Depois eu me vi enxergando pelos seus olhos e me vi Mulambo dizendo seeennsacional Porps!
Agora, numa respiração profunda, lembro-me de você tão calado, tão escondido
tão sábio e tão ciente.
:)